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Devemos sujar as mãos, D. Januário Torgal Ferreira, 201205


“Não devemos ter medo de sujar as mãos, ajudando os miseráveis da terra. Para que servirá ter as mãos limpas, se as temos nos bolsos?”, exclamou em Fátima, em 13 de Maio, o Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício da Cultura.

A higiene das mãos parece perder-se quando abraçamos “o coração das massas”, onde a multidão dos pobres nos suplica a Boa Nova e nos pede pão, água, saúde, emprego e a defesa das crianças. Tocar nestas questões é ser cúmplice de leprosos. As mãos sujam-se. Mas, em estado mais lastimável, ficam as línguas que caluniam e inventam. Tem-se medo.

Certos temas são campos semeados de bombas, dinamitando pessoas, intenções, percursos… Sujar as mãos… É melhor – dizem-nos - não cumprimentar pessoas, não emitir opiniões, não frequentar “más companhias”. As mãos sem calos eram prova de mandrianice. As mãos limpas são equipamentos de jogadores que, em qualquer desporto, preferem entregá-los sem mácula, a esforçarem-se, desorganizando o uniforme. Há tanto “jogador” por aí! Lembram-se?

Sartre, no Natal de 1941, escreveu no seu campo de prisioneiro, a peça Barjona, nome do chefe de um bando, que, apesar de descrente, defende a criança levada para o Egipto por Maria e José, sendo ele morto pelas forças de Herodes. E assim teatraliza Sartre a urgência de se tomar posições. Devemos, como cristãos, estar do lado da não violência e possivelmente cúmplices da injustiça ou, do lado da violência e portanto eventualmente atores da destruição e da morte? (A. Dumas e outros, para uma moral da violência, trad., Lisboa, Moraes Editores, 1971).

Refletir em certos problemas equivale a cair-nos o teto e a casa. Até não se trata de inventar soluções novas, mas de entender com razões o que, até aí, era apenas som de uma voz de comando. O “ousa pensar” Kantiano deve ganhar também este sentido. Há comandos sem razoes. Há autoridades bem acompanhadas pela retidão do conceito. Um cristão terá de sujar as mãos ao participar na promoção da humanidade? pergunta o fundador de Taizé, Roger Schutz (Violence des pacifiques, Taizé, 1968, ps. 195-198). O desemprego aumenta. Os cuidados em não dar nas vistas, também. Mãos delicadas. Sem calos nem agressões. Jogar bem é ser “jogador”? Pobres sempre seremos. Mas asseados e limpos! É o fatalismo a corroer-nos as entranhas?

Lisboa, 17 de Maio de 2012 Januário Torgal Mendes Ferreira Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança

http://opiniao.ecclesia.pt/2012/05/compasso-do-tempo-de-17-maio-2012.html

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