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Cinco vias para o conhecimento de Deus (notas de andar e de ver)



Hoje falo-vos apoiado aos ombros de um gigante: Tomás de Aquino. S. Tomás apresentou-nos um texto precioso em que fala de cinco vias para chegar ao conhecimento de Deus. Infelizmente, com a nossa mentalidade demasiada cientificada, quando lemos "cinco vias para o conhecimento de Deus" aquilo em que pensamos é 'cinco provas para termos a certeza de que Deus existe'. Mas há duas diferenças entre o lido e o interpretado: 1) uma via é um caminho, ao passo que uma certeza é um ponto final ou uma porta fechada; 2) ter a certeza que Deus existe é ficar informado sobre uma realidade fora de mim, ao passo que conhecer a Deus é implicar-me totalmente na Sua descoberta. Portanto, se o escopo científico quer certezas e provas, as vias de S. Tomás querem intimidade realista e testemunho com causalidade na re(ve)lação.

Num caderno A6 de capa preta, tentei escrever as minhas cinco vias à luz desta pergunta: como é que Taiwan está a abrir para mim vias para o conhecimento de Deus? Dentro de um mês e meio deixo Taiwan rumo a Beijing, o que me obrigou a fazer-me esta pergunta. Um ponto prévio: talvez isto não seja bem uma crónica. Será mais justo chamar-lhe uma "kairónica" [do grego, kairos, que significa tempo favorável], pois os factos estão narrados em ordem de importância e não por ordem cronológica. Porém, tudo isto se passou em cinco dias diferentes. Cada dia, uma via, um passo em direcção a Deus à custa de fracassos, caracteres e outras chinesisses.

1º viaa analogia do amor. Acordei, eram 06h50. Lavar, vestir... coisas do costume. Pequeno Almoço. Estava cheio de sono, acho que não falei com ninguém à mesa. 08h00, saí de casa em direcção à faculdade. Ao chegar à faculdade encontrei uma professora minha. Conversa simpática: "ai e tal, como é que está, como é que não está?". Acabada a conversa, a professora seguiu o seu caminho. Dei dois passos e parei, atónito...! Disse para mim mesmo: "Ui!! Nós falámos em chinês?!? Percebi tudo o que ela disse e acho que ela também me percebeu?!? Já não posso dizer: 'Pá, isto p'ra mim é chinês!' Ganda cena!!" Acordei finalmente, totalmente do sono! Entender e ser entendido é um dom inesperado. Esta paz interior de se saber entendido, neste caso no chinês, é uma cópia em miniatura da paz que recebo quando me sinto entendido diante do Evangelho.

2º via, da liga dos últimos à comunhão dos santos. Passei a tarde toda a fazer exercícios de chinês. A professora mandou-nos fazer 3 páginas de exercícios e, durante duas horas e meia, só escrevi a primeira página. Mais ainda, quando revi os exercícios que fiz, percebi que metade deles estavam errados. Saí do quarto para a oração comunitária com cara de enterro. Na hora de jantar, sem que eu tivesse puxado o assunto, um jesuíta espanhol começa a contar como fora um zero à esquerda no estudo da língua chinesa. Ele que agora fala perfeitamente em chinês, tinha histórias de chorar a rir sobre calinadas que deu... e aquela vez em que chegou a ofender algumas pessoas numa missa pelo facto de ter dito uma palavrão, sem intenção, por trocar os tons de um caracter e, por isso, o sentido da própria palavra. Cada pessoa começou a pôr as suas histórias em cima da mesa e eu sentia-me a ser elevado desde a liga dos últimos até à comunhão dos santos. É a graça de perceber que este caminho tem marcas de sapatos de gente grande que vai à minha frente.

3º viacomo pôr Deus a rir. Aqui não há muito que dizer. Cheguei ao exame de consciência e lembrei-me que, de manhã cedo, tinha planeado o meu dia de fio a pavio achando que ia cumprir tudo, tim-tim por tim-tim. Portanto, como pôr Deus a rir logo pela manhã? Planeia o teu dia! Assim de manhã, Deus ri sozinho. À noite, rimos os dois.

4º via, como saber-se próximo de Jesus. Hoje, ao fim de sete meses a estudar no Language Center da Universidade Católica de Taipé, uma pessoa perguntou a um jesuíta brasileiro: como é que tu aguentas viver assim?, e outra perguntou-me a mim: Tu pareces sempre animado... isso é teatro? O nosso tempo de aulas é sempre muito intenso e as oportunidades de falarmos com os outros alunos são sempre muitos escassas. Mas, ao fim deste tempo, muitos deles vão ganhando interesse ao ver-nos passar nos corredores. Uns ouviram dizer que queremos ser padres... outros que somos missionários... outros não ouviram nada, mas gostam de fazer perguntas. O que é que eles verão em nós? Creio que, à partida, vêem uma espécie de ave rara... aos poucos, começam a ver em nós uma pergunta. Uma pergunta que Deus provoca pelo estilo de vida que o nosso desejo procura e que a fidelidade de Deus mantém.

5º via, Eucaristia. E quando nenhuma destas 4 vias tem lugar no meu dia? E quando o dia é completamente insosso? Quando as horas são feitas de silêncio a acompanhar tentativas, nem sempre felizes, de memorizar mais um caracter? Nesses dias, como em todos os outros, ao chegar o fim da tarde, resta-nos celebrar a Eucaristia em chinês. Não se percebe nada, mas compreende-se tudo. Este é o ponto comum entre o que vivi em Portugal e o que vivo aqui. Este é o ponto comum entre a Igreja e a minha comunidade. Este é o ponto comum entre os primeiros apóstolos e nós. Este é o ponto comum entre o céu e a terra. Este é Jesus presente no meio de nós! O resto são balões e caracteres... os balões, o vento leva, os caracteres, se chegar a velho é bem provável que os vá esquecer... mas Jesus permanece! Permanece a edificar a Igreja como sacramento lento de uma encarnação real de Deus através das nossas histórias. Só por isso é que vale a pena continuar a desenhar estes caracteres e entrar no terreno do vizinho para lhe dizer: "Ouve lá, oh chinoca, tu és meu irmão, sabias?"

Bom, se calhar o S. Tomás está a bater com a cabeça na parede ao ver o que eu estou a escrever... é possível! Mas, em Taiwan, estas são as cinco vias que, como cinco espelhos baços, me ajudam a adivinhar imperfeitamente Aquele que havemos de conhecer perfeitamente.

Miguel Pedro Melo
01.05.2012

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