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1. Hoje é dia 24 de Dezembro. Faz aí uns dez dias, fui a Valadares, por sinal terra do meu avô paterno. Durante muitos anos, pela mão de meu pai, ia regularmente a Valadares, à Rua das Pedreiras, que era perto e bom caminho.

De resto, algures pelo fim do secundário e início da universidade, por lá passei jornadas de grande intensidade, com as glórias, os terrores e as aventuras de que fala o cantor. Tenho lá amigos, daqueles maiores, que, mesmo quando os vemos pouco ou até quase nada, viajam sempre connosco – e é sabido que viajo muito. Mas nesse dia fui a Valadares fazer algo que faço de quando em vez: falar com Anselmo Borges, o padre, o filósofo, o teólogo, o professor e o amigo. Estive por lá pouco menos que um par de horas e, em quinze ou vinte minutos, regressei a casa. Regressei a casa a pensar, a pensar em Deus.

2. A conversa andou, por certa altura, em redor de duas das leituras do passado domingo – o quarto do Advento na liturgia católica –, que prenuncia e prescreve que o nome da criança que há-de nascer será Emanuel, o “Deus connosco”. Muito haveria a dizer sobre o sentido ou os sentidos dessas leituras, seja a do Livro do Profeta Isaías, seja a do Evangelho de Mateus. Mas as palavras trocaram-se em volta dessa ideia de um Deus que vem até nós, que está connosco, que está no meio de nós; de um Deus que Se fez um de nós, de um Deus que é um de nós. E apesar de arrancar destas ideias simples e profundas – profundas até à medula e até à raiz –, o diálogo foi-se fazendo mais complexo e mais elaborado. A conversa encaminhou-se então, afoita e presumida ou presunçosamente, para uma tentativa, um ensaio, um esboço da noção, do conceito, quiçá da definição de Deus. Uma conversa, imagine-se o atrevimento, em busca da ideia de Deus, de uma formulação verbal da ideia de Deus.

3. A propósito justamente desta ideia de que Deus é o “Deus connosco”, o padre Anselmo Borges lembrava o episódio bíblico da sarça ardente, do início do Livro do Êxodo, em que Moisés se encontra “face a face” com Deus (embora Moisés tenha recatadamente escondido o seu rosto, de modo a não contemplar Deus). E aí, quando Deus mostra a intenção de libertar o povo de Israel da servidão do Egipto, Moisés pergunta: “Quando eu for ter com os filhos de Israel e lhes disser que o Deus dos seus pais me enviou para junto deles, se me perguntarem qual o Seu nome, que lhes responderei?” (Ex, 3, 13).

A esta interrogação Deus respondeu: “Eu sou Aquele que sou.” Em hebraico: “Ehyeh asher ehyeh.” Ora, aqui começam, dizia-me o meu interlocutor, os eternos e insanáveis problemas de tradução. Em hebraico, ensinou-me ele, aquela expressão significa “Eu serei Aquele que serei” ou “Eu serei o que serei”, o que bem vistas as coisas anda perto do canónico “Eu sou Aquele que sou”. O problema põe-se, todavia, no sentido do verbo “ser” em hebraico, que não corresponde exactamente ao sentido latino do verbo "ser". Na verdade, o verbo “ser”, na língua do povo eleito, não tinha o perfil “ontológico” ou “essencial” que a cultura greco-latina e a sua filosofia emprestam ao verbo. Na verdade, trata-se muito mais de um “ser” na acepção de “ser presente”, de um “estar com”, de um “ser em relação” (em “relação de acompanhamento”) do que de um “ser” no sentido “autoperformativo” (de um ser que se cumpre “sendo” ou justamente “por ser” ou ainda “no ser e só no ser”). O “ser” hebraico que o Livro do Êxodo põe na boca de Deus e no Seu “auto-retrato” é um conceito eminentemente dinâmico e relacional e aponta muito mais para a ideia de que Deus “é Aquele que está e estará com”, “Aquele que acompanha”, “Aquele que não abandona, que não deixa”. “[Deus é O que] está e estará convosco na libertação”, “O que acompanha na libertação”. É evidentemente o Emanuel, o “Deus connosco”.

4. Este “Eu sou Aquele que sou” verteu-se para o latim na conhecida fórmula “sum qui sum”, a qual, na linha filosófica de Tomás de Aquino – explicava-me o teólogo português –, há-de tornar-se no famoso “Ipsum Esse Subsistens”: Deus como o próprio Ser subsistente. Ora, esta conversão das categorias dinâmicas e relacionais do verbo “ser” da língua hebraica para as categorias estáticas e ontológicas do verbo “ser” do latim acabou por construir uma noção “essencialista” e “ontológica” de Deus. Acabou, na verdade, por construir ou favorecer a construção de um Deus distante, estático, que se define apenas e basicamente por “ser” – uma entidade ontológica, existente e subsistente por si enquanto essência.

Deixou, pois, na penumbra a ideia do “Deus connosco”, do Deus que só é Deus em relação; do Deus como um ser cuja natureza é a indispensabilidade do Outro ou dos Outros, do Deus como o ser para Quem a relação com o Outro é indispensável. Essa “perda” na tradução deixou de facto para trás a dimensão comunicativa e interactiva de Deus, a sua dimensão de proximidade, intimidade, interioridade e companhia.

5. Envolto em tudo isto e nas palavras que íamos juntando, vim de Valadares para casa a pensar e a meditar. E a pensar se às vezes – com a liberdade que só a (minha) ignorância permite – não vale a pena agitar as verdades estabelecidas. Lembro-me, por exemplo, de recentemente ter sido fortemente “tocado” pela proposta de Tolentino de Mendonça de olhar para a relação com Deus como uma “relação de amizade” e não como a tradicional e ubíqua “relação de amor” (no Nenhum Caminho será Longo – para uma teologia da amizade). E, aproveitando que o português, com vantagem sobre outras línguas (incluindo o latim), tem a característica distintiva de diferenciar o “ser” do “estar”, sugerir uma mudança de tradução naquela interessante “autodefinição” de Deus. E não mais dizer que “Deus é Aquele que é”, mas passar a viver Deus como “Aquele que está”. Para mim, nesta véspera de Natal, Deus não é esse ser distante e estático que é, mas antes o ser próximo e interactivo que está. Deus pode não ser afinal Aquele que é. Deus é Aquele que está.

Deputado europeu (PSD) paulo.rangel@europarl.europa.eu

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