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Deus não protege da noite, mas na noite

O Natal não é sentimental mas dramático: é o início de um novo ordenamento de todas as coisas. Não uma festa de bons sentimentos, mas o juízo sobre o mundo, a conversão da história. A grande roda do mundo tinha sempre girado num único sentido: de baixo para o alto, do pequeno para o grande, do frágil para o forte. Quando Jesus nasce, ou melhor, quando o Filho de Deus é dado à luz por uma mulher, o movimento da história bloqueia-se por um instante, e depois começa a fluir no sentido oposto: o omnipotente faz-se frágil, o eterno faz-se mortal, o infinito está no fragmento.

A sorte do mundo decide-se no interior de uma família: um pai, uma mãe, um filho, o nó da vida, o eixo do futuro. O que é decisivo – hoje como então – acontece dentro das relações, coração a coração, na coragem quotidiana de uma, de muitas, de infinitas criaturas enamoradas e generosas que sabem tomar consigo a vida de outros. José é o modelo de todo o crente, no qual a fé e os afetos se reforçam mutuamente. Herodes envia soldados, Deus manda um sonho. Um grão de sonho que caiu dentro das duras engrenagens da história, ao ponto de chegar a modificar o seu curso.

«José levantou-se de noite, tomou o Menino e sua Mãe e partiu para o Egito.» Um Deus que foge na noite! Porque é que o anjo ordena a fuga, sem garantir um futuro, sem marcar o caminho e a data do regresso? Porque Deus não salva do exílio, mas no exílio; não te evita o deserto mas é força dentro do deserto; não protege da noite, mas na noite.

Por três vezes José sonha. De cada vez um anúncio parcial, uma profecia breve. Todavia, para partir não pede que tudo esteja claro, não pede para ver todo o horizonte, mas apenas a luz que basta ao primeiro passo, apenas a força necessária para a primeira noite. A José basta um Deus que entretece a sua respiração com a dos três fugitivos para saber que a viagem tem a casa por destino, ainda que passe pelo longínquo Egito; que é uma aventura de perigos, de caminhos, de refúgios e de sonhos, mas que há um fio condutor seguro na mão de Deus.

José representa todos os justos da terra, homens e mulheres que, tomando sobre si as vidas de outros, vivem o amor sem contar cansaços e medos; todos aqueles que sem publicidade e sem recompensa, em silêncio, fazem o que devem fazer; todos aqueles cujo papel supremo no mundo é proteger a vida com a própria vida. E assim o fazem: concretos e ao mesmo tempo sonhadores, desarmados mas no entanto mais fortes do que qualquer faraó.



Leitura do Evangelho do Domingo da Sagrada Família
Mateus 2, 13-15.19-23

Depois de os Magos partirem, o Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: «Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egito e fica lá até que eu te diga, pois Herodes vai procurar o Menino para O matar».

José levantou-se de noite, tomou o Menino e sua Mãe e partiu para o Egipto e ficou lá até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o que o Senhor anunciara pelo Profeta: «Do Egito chamei o meu filho».

Quando Herodes morreu, o Anjo apareceu em sonhos a José, no Egito, e disse-lhe: «Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e vai para a terra de Israel, pois aqueles que atentavam contra a vida do Menino já morreram».

José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e voltou para a terra de Israel. Mas, quando ouviu dizer que Arquelau reinava na Judeia, em lugar de seu pai, Herodes, teve receio de ir para lá. E, avisado em sonhos, retirou-se para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Assim se cumpriu o que fora anunciado pelos Profetas: «Há de chamar-Se Nazareno».



P. Ermes Ronchi
© SNPC (trad.) | 27.12.13

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