Avançar para o conteúdo principal

Eu, médica?

Levei-o ao hospital. Assisti, assim, a uma das primeiras consultas do Banco, apressadas, quase brutais, em que toda a gente tinha o ar de estar ali por empréstimo. Médicos, enfermeiros, funcionários, pareciam atormentados pela ideia de algum outro serviço importante e inadiável. O primo ficou internado, sob a tremenda suspeita de um cancro na bexiga. Visitava-o diariamente, embora nada tivéssemos a dizer um ao outro. Ele não tinha apetite, secava como uma árvore desfolhada. Encarreguei um enfermeiro de lhe comprar leite fora do hospital.
Pela primeira vez, sentia-me misturado nesse ambiente. As horas ali à beira do primo Lucas revelaram o interior dum mundo que até aí servia apenas de ilustração das teorias aprendidas. Um mundo trágico e nojento. Ali, os nossos pulmões sorviam a doença. Um ar salobro, uma luza amarela. Fístulas horrrendas, rostos tremendamente resignados ou ansiosos, urinas grossas, gemidos em bocas escuras. Macarrão no fundo dos pratos, branco empastado repelente. Em tudo isto cheirava. Um odor que ia das narinas ao estômago, contorcendo-o de nojo. Dantes, entrava ali com um ar afadigado e breve dos mestres. O ambiente satisfazia a nossa vaidade profissional. Tudo isso, agora, tinha um significado humano. Dores e chagas atormentando homens como eu e não curiosas entidades clínicas. Causavam pena, respeito e repulsa física.

In: Fernando Namora, Retalhos da Vida de um Médico (p.44-45). Lisboa: Editorial Inquérito, 1949

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Não é uma sugestão, é um mandamento

Nos Evangelhos Sinóticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do «maior mandamento». Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha diretiva, mas um mandamento. Primeiro, temos de amar a Deus com todo o coração e com toda a nossa força, sobre todas as coisas. Ao trabalhar com os pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu sempre ouvia era: «Primero, Dios». Deus tem de ser o primeiro nas nossas vidas, depois, todas as nossas prioridades estão corretamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas, mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do «maior mandamento» é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos, na parábola do Bom Samaritano, que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida, aquele que sofre e, por isso, tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais do que os pagãos e os não cr
Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ninguém Espelhismo de outra Tão em sigilo e extrema Tão sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcançáveis Coisas mortas. Talvez não seja. E ínfima, tangente Aspire indefinida Um infinito de sonhos E de vidas. HILDA HILST Cantares de perda e predileção, 1983

Oh Senhor

Ó Senhor, que difícil é falar quando choramos, quando a alma não tem força, quando não podemos ver a beleza que tu entregas em cada amanhecer. Ó Senhor, dá-me forças para poder encontrar-te e ver-te em cada gesto, em cada coisa desta terra que Tu desenhaste só para mim. Ó Senhor, sim, eu seu preciso da tua mão, do abraço deste amigo que não está. Dá-me luz, à minha alma tão cansada, que num sonho queria acordar. Ó Senhor, hoje quero entregar-te o meu canto com a música que sinto. Eu queria transmitir através destas palavras. Fico mais perto de ti.