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Mesmo antes do mundo acabar, religioso me confesso

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Car­de­ais e bispos,muitos car­de­ais e bispos

Ami­gos, com­pa­nhei­ros e cor­re­li­gi­o­ná­rios declaro-me reli­gi­oso! Já o sou desde que me lem­bro, mas só hoje o con­fesso em toda a pro­fun­di­dade da letra de forma. Reli­gi­oso e muito.
E o que quero dizer com este termo – reli­gi­oso? Pois bem, o que o termo quer dizer.
Para mui­tos, reli­gião vem de reli­gare, ou seja, agru­par, de ligar duas vezes, ou ligar rapi­da­mente. Lamento dizê-lo, mas esta eti­mo­lo­gia é uma crença popu­lar que vem do latim bár­baro até a auto­res moder­nos. Este reli­gar traduzir-se-ia no facto de as reli­giões cri­a­rem laços entre os homens ou pon­tes entre o céu e a terra.
O velho Cícero, no entanto, enten­dia que a pala­vra tinha ori­gem em rele­gere, ou seja ler duas vezes, ter bas­tante pre­sente um texto – o que se coa­duna mais com a impor­tân­cia da pala­vra nas mais diver­sas for­mas de religião.
Mas a minha eti­mo­lo­gia pre­fe­rida está em reli­gi­ens, que é tam­bém a mais fre­quen­te­mente encon­trada nos espe­ci­a­lis­tas, nome­a­da­mente no nosso José Pedro Machado no Dici­o­ná­rio Eti­mo­ló­gico da Lín­gua Por­tu­guesa, que tive a feli­ci­dade de com­prar há 10 anos num alfar­ra­bista de Braga. Reli­gi­ens, que se opõe anegli­gi­ens (que dá, por sua vez, ori­gem a negli­gên­cia) quer dizer cui­dado. Ou, melhor ainda, escrú­pulo. Oreligu era jus­ta­mente o cui­dado ou o escrú­pulo que se colo­cava na ado­ra­ção dos lares, ou seja, no tri­buto aos ante­pas­sa­dos dei­fi­ca­dos de cada família.
E aqui têm como sendo eu um tipo escru­pu­loso, me afirmo reli­gi­oso. E muito, com aquele escrú­pulo (descru­pu­lus, a pedri­nha agu­çada, que tanto se mete na san­dá­lia para nos ator­men­tar a cami­nhada, como na balança para equi­li­brar o fiel até ao rigor) dos que dor­mem bem à noite.
Mesmo na noite em que o mundo (não) acaba.

A minha religião

Woman Looking at the Sky
O Hen­ri­que fez aqui uma série de belos cír­cu­los em volta do “reli­gi­oso”. Não resisto a uma vol­ti­nha, tam­bém. Aviso já que sem ler o post dele não se per­ce­berá pata­vina do que vou dizer e mesmo assim tenho dúvi­das, sendo o her­me­tismo da minha exclu­siva responsabilidade.
A incur­são do Hen­ri­que pelo reli­gi­oso está sus­ten­tada na eti­mo­lo­gia.  E embora con­fesse uma bruta inveja pelo Dici­o­ná­rio Eti­mo­ló­gico que ele abar­ba­tou em Braga, sigo, como no comen­tá­rio que lhe fez o Panurgo, um cami­nho dife­rente. A eti­mo­lo­gia não me ale­gra. Mesmo o re-ligare em que as aulas com o Padre Manuel Antu­nes me con­ti­nuam a fazer crer, parece-me pouco para o que entendo por religião.
Para mim, reli­gião é tirar os olhos do chão e lavantá-los para o alto. Os tipos que andam com a cabeça no ar, essa neces­si­dade de andar com a cabeça no ar, em vez de a dei­xar enta­lada entre os ombros, é a reli­gião ou o sen­ti­mento reli­gi­oso. Às vezes dá mau resul­tado: Tales espetou-se num buraco, Sócra­tes, de tanto levan­tar a cabeça para inves­ti­gar os céus, bebeu o que bebeu.
Já leva­mos uns sécu­los de des­va­lo­ri­za­ção do reli­gi­oso, tomado mui­tas vezes como puro obs­cu­ran­tismo, como uma atá­vica ten­ta­tiva de pro­tec­ção infan­til, para não dizer infan­ti­lóide, con­tra os medos que a Natu­reza nos ins­pi­rou no passado. Esta lei­tura, tão poli­ti­ca­mente correcta, não cola. Levan­tar a cabeça para o alto é, sim, um sinal claro de insa­tis­fa­ção, de falta de qual­quer coisa, de um sopro inex­pli­cá­vel. Inspira-se, levanta-se a cabeça para o alto e é isso o sen­ti­mento reli­gi­oso. Em boa ver­dade, quando a huma­ni­dade come­çou a levan­tar a cabeça para o céu, nesse movi­mento con­cen­trou curi­o­si­dade cien­tí­fica, aspi­ra­ção esté­tica e von­tade de ética. Levanta-se a cabeça para o céu e está-se à pro­cura de ver­dade, de beleza e de sen­tido. Não é só uma re-ligação do homem com o cos­mos, é tam­bém um movi­mento inte­rior de busca de identidade.
O nosso ante­pas­sado que pela pri­meira vez levan­tou a cabeça para o céu não era um homem infe­rior, não era um ani­mal ame­dron­tado. Era um tipo que não sabia, mas tinha von­tade de saber, era um tipo que matava, mas tinha von­tade de não matar, era um tipo feio que tinha fome de beleza.
Não foi pre­ciso muito, bas­tou levan­tar a cabeça para o céu.
http://www.escreveretriste.com/

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